domingo, agosto 29, 2010

Suely Rolnik – Cartografia Sentimental

"Encontrar é achar, é capturar, é roubar, mas não há método para achar, só uma longa preparação. Roubar é o contrário de plagiar, copiar, imitar ou fazer como. A captura é sempre uma dupla-captura, o roubo, um duplo-roubo, e é isto o que faz não algo de mútuo, mas um bloco assimétrico, uma evolução a-paralela, núpcias sempre 'fora' e 'entre'."

- Gilles Deleuze e Claire Parnet, Dialogues

Cartografia: uma definição provisória

Para os geógrafos, a cartografia-diferentemente do mapa, representação de um todo estático-é um desenho que acompanha e se faz ao mesmo tempo que os movimentos de transformação da paisagem.

Paisagens psicossociais também são cartografáveis. A cartografia, nesse caso, acompanha e se faz ao mesmo tempo que o desmanchamento de certos mundos-sua perda de sentido-e a formação de outros: mundos que se criam para expressar afetos contemporâneos, em relação aos quais os universos vigentes tornaram-se obsoletos.

Sendo tarefa do cartógrafo dar língua para afetos que pedem passagem, dele se espera basicamente que esteja mergulhado nas intensidades de seu tempo e que, atento às linguagens que encontra, devore as que lhe parecerem elementos possíveis para a composição das cartografias que se fazem necessárias.

O cartógrafo é antes de tudo um antropófago.

O cartógrafo

A prática de um cartógrafo diz respeito, fundamentalmente, às estratégias das formações do desejo no campo social. E pouco importa que setores da vida social ele toma como objeto. O que importa é que ele esteja atento às estratégias do desejo em qualquer fenômeno da existência humana que se propõe perscrutar: desde os movimentos sociais, formalizados ou não, as mutações da sensibilidade coletiva, a violência, a delinqüência. . . até os fantasmas inconscientes e os quadros clínicos de indivíduos, grupos e massas, institucionalizados ou não.

Do mesmo modo, pouco importam as referências teóricas do cartógrafo. O que importa é que, para ele, teoria é sempre cartografia-e, sendo assim, ela se faz juntamente com as paisagens cuja formação ele acompanha (inclusive a teoria aqui apresentada, naturalmente). Para isso, o cartógrafo absorve matérias de qualquer procedência. Não tem o menor racismo de freqüência, linguagem ou estilo. Tudo o que der língua para os movimentos do desejo, tudo o que servir para cunhar matéria de expressão e criar sentido, para ele é bem-vindo. Todas as entradas são boas, desde que as saídas sejam múltiplas. Por isso o cartógrafo serve-se de fontes as mais variadas, incluindo fontes não só escritas e nem só teóricas. Seus operadores conceituais podem surgir tanto de um filme quanto de uma conversa ou de um tratado de filosofia. O cartógrafo é um verdadeiro antropófago: vive de expropriar, se apropriar, devorar e desovar, transvalorado. Está sempre buscando elementos/alimentos para compor suas cartografias. Este é o critério de suas escolhas: descobrir que matérias de expressão, misturadas a quais outras, que composições de linguagem favorecem a passagem das intensidades que percorrem seu corpo no encontro com os corpos que pretende entender. Aliás, "entender", para o cartógrafo, não tem nada a ver com explicar e muito menos com revelar. Para ele não há nada em cima-céus da transcendência-, nem embaixo-brumas da essência. O que há em cima, embaixo e por todos os lados são intensidades buscando expressão. E o que ele quer é mergulhar na geografia dos afetos e, ao mesmo tempo, inventar pontes para fazer sua travessia: pontes de linguagem.

Vê-se que a linguagem, para o cartógrafo, não é um veículo de mensagens-e-salvação. Ela é, em si mesma, criação de mundos. Tapete voador. . . Veículo que promove a transição para novos mundos; novas formas de história. Podemos até dizer que na prática do cartógrafo integram-se história e geografia.

Isso nos permite fazer mais duas observações: o problema, para o cartógrafo, não é o do falso-ou-verdadeiro, nem o do teórico-ou-empírico, mas sim o do vitalizante-ou-destrutivo, ativo-ou-reativo. O que ele quer é participar, embarcar na constituição de territórios existenciais, constituição de realidade. Implicitamente, é óbvio que, pelo menos em seus momentos mais felizes, ele não teme o movimento. Deixa seu corpo vibrar todas as freqüências possíveis e fica inventando posições a partir das quais essas vibrações encontrem sons, canais de passagem, carona para a existencialização. Ele aceita a vida e se entrega. De corpo-e-língua.

Restaria saber quais são os procedimentos do cartógrafo. Ora, estes tampouco importam, pois ele sabe que deve "inventá-los" em função daquilo que pede o contexto em que se encontra. Por isso ele não segue nenhuma espécie de protocolo normalizado.

O que define, portanto, o perfil do cartógrafo é exclusivamente um tipo de sensibilidade, que ele se propõe fazer prevalecer, na medida do possível, em seu trabalho. O que ele quer é se colocar, sempre que possível, na adjacência das mutações das cartografias, posição que lhe permite acolher o caráter finito ilimitado do processo de produção de realidade que é o desejo. Para que isso seja possível, ele se utiliza de um "composto híbrido", feito do seu olho, é claro, mas também, e simultaneamente, de seu corpo vibrátil, pois o que quer é apreender o movimento que surge da tensão fecunda entre fluxo e representação: fluxo de intensidades escapando do plano de organização de territórios, desorientando suas cartografias, desestabilizando suas representações e, por sua vez, representações estacando o fluxo, canalizando as intensidades, dando-lhes sentido. É que o cartógrafo sabe que não tem jeito: esse desafio permanente é o próprio motor de criação de sentido. Desafio necessário-e, de qualquer modo, insuperável-da coexistência vigilante entre macro e micropolítica, complementares e indissociáveis na produção de realidade psicossocial. Ele sabe que inúmeras são as estratégias dessa coexistência-pacífica apenas em momentos breves e fugazes de criação de sentido; assim como inúmeros são os mundos que cada uma engendra. É basicamente isso o que lhes interessa.

Já que não é possível definir seu método (nem no sentido de referência teórica, nem no de procedimento técnico) mas, apenas, sua sensibilidade, podemos nos indagar: que espécie de equipamento leva o cartógrafo, quando sai a campo?

Manual do cartógrafo

É muito simples o que o cartógrafo leva no bolso: um critério, um princípio, uma regra e um breve roteiro de preocupações-este, cada cartógrafo vai definindo e redefinindo para si, constantemente. O critério de avaliação do cartógrafo você já conhece: é o do grau de intimidade que cada um se permite, a cada momento, com o caráter de finito ilimitado que o desejo imprime na condição humana desejante e seus medos. É o do valor que se dá para cada um dos movimentos do desejo. Em outras palavras, o critério do cartógrafo é, fundamentalmente, o grau de abertura para a vida que cada um se permite a cada momento. Seu critério tem como pressuposto seu princípio.

O princípio do cartógrafo é extramoral: a expansão da vida é seu parâmetro básico e exclusivo, e nunca uma cartografia qualquer, tomada como mapa. O que lhe interessa nas situações com as quais lida é o quanto a vida está encontrando canais de efetuação. Pode-se até dizer que seu princípio é um antiprincípio: um princípio que o obriga a estar sempre mudando de princípios. É que tanto seu critério quanto seu princípio são vitais e não morais.

E sua regra? Ele só tem uma: é uma espécie de "regra de ouro". Ela dá elasticidade a seu critério e a seu princípio: o cartógrafo sabe que é sempre em nome da vida, e de sua defesa, que se inventam estratégias, por mais estapafúrdias. Ele nunca esquece que há um limite do quanto se suporta, a cada momento, a intimidade com o finito ilimitado, base de seu critério: um limite de tolerância para a desorientação e a reorientação dos afetos, um "limiar de desterritorialização". Ele sempre avalia o quanto as defesas que estão sendo usadas servem ou não para proteger a vida. Poderíamos chamar esse seu instrumento de avaliação de "limiar de desencantamento possível", na medida em que, afinal, trata-se, aqui, de avaliar o quanto se suporta, em cada situação, o desencantamento das máscaras que estão nos constituindo, sua perda de sentido, nossa desilusão. O quanto se suporta o desencantamento, de modo a liberar os afetos recém-surgidos para investir em outras matérias de expressão e, com isso, permitir que se criem novas máscaras, novos sentidos. Ou, ao contrário, o quanto, por não se suportar esse processo, ele está sendo impedido. É claro que esse tipo de avaliação nada tem a ver com cálculos matemáticos, padrões ou medidas, mas com aquilo que o corpo vibrátil capta no ar: uma espécie de feeling que varia inteiramente em função da singularidade de cada situação, inclusive do limite de tolerância do próprio corpo vibrátil que está avaliando, em relação à situação que está sendo avaliada. A regra do cartógrafo então é muito simples: é só nunca esquecer de considerar esse "limiar". Regra de prudência. Regra de delicadeza para com a vida. Regra que agiliza mas não atenua seu princípio: essa sua regra permite discriminar os graus de perigo e de potência, funcionando como alerta nos momentos necessários. É que, a partir de um certo limite-que o corpo vibrátil reconhece muito bem-a reatividade das forças deixa de ser reconversível em atividade e começa a agir no sentido da pura destruição de si mesmo e/ou do outro: quando isso acontece, o cartógrafo, em nome da vida, pode e deve ser absolutamente impiedoso.

De posse dessas informações, podemos tentar definir melhor a prática do cartógrafo. Afirmávamos que ela diz respeito, fundamentalmente, às estratégias das formações do desejo no campo social. Agora, podemos dizer que ela é, em si mesma, um espaço de exercício ativo de tais estratégias. Espaço de emergência de intensidades sem nome; espaço de incubação de novas sensibilidades e de novas línguas ao longo do tempo. A análise do desejo, desta perspectiva, diz respeito, em última instância, à escolha de como viver, à escolha dos critérios com os quais o social se inventa, o real social. Em outras palavras, ela diz respeito à escolha de novos mundos, sociedades novas. A prática do cartógrafo é, aqui, imediatamente política.

Extraído de Suely Rolnik, Cartografia sentimental, transformações contemporâneas do desejo,

São Paulo: Editora Estação Liberdade, 1989, p.15-16; 66-72.
Querer a vida é querer amar.


Muito mais que amar,

Viver no amor!

Mais e mais,

Ser flor,

Céu,

Estrelas,

Mar.

Mar de amores!

Amar por todas as razões.

Em todas as ocasiões.

Errante peregrina

neste destino:

Amor.

CF
Pode meu querido ouvir as melodias que ouvi?


Acolhidos fomos em um leito que não desejamos mais abandonar...


Mesmo quando imersos na realidade somos divinos filhos do infinito.

CF
Em meus sonhos pouco importa a realidade!
Neste universo que é meu incluo tudo o que desejo e não posso realizar. 
Sou senhora de mim,
posso dançar diante dos olhos de todos que não me permitem nem mesmo caminhar.
Posso aquecer esta vaidade que é declarar-me sua e sentir o essencial da flor: o perfume.

CF
Os seus olhos vêem o azul


Que ninguém mais é capaz

Todas as flores deste jardim celeste

Perfumaram o leito de amor

Luz do sol,

Alma do poema, orvalho da manhã

Se me encontrou não me deixa ir

Quando desenha com traço de mestre

Contornos de minha essência faço de

Suas mãos o receptáculo, o cálice onde

Derramo meu vinho e aqueço o leito

Do rei como a sulamita eleita para Davi

CF
Não tardes amor meu!

Não desperdice o tempo que não temos...

Serei sucumbida pelo relógio e a pressão das horas.

Amar é para o momento que se ama
CF
Impera em mim


a grandeza deste mar que,

antes de ser teu domínio,

era apenas meu caminho.

Verdes estradas em verde olhar de solidão:

tristeza ser só, tristeza ser só!

Velas para quem conquista os ventos.

Para mim, apenas tempo de

eternas partidas e finitas chegadas!

Lágrimas em todas as noites de ausência...

Assim vai preenchendo teu oceano de conquistas

com a água que rouba de mim.


CF
Estou louca!

Tenho pressa

Em viver e,

Definitivamente,

Não quero

A cura.

Meu desequilíbrio

Me basta!

A voz

Indaga:

Para onde vai?

Não sei...



Há um lugar ou

Uma terra para

Conquistar?

Há um eu

(mal estar)

para explicar?



Lembro da infância,

De um balanço...

O vento.



Hoje apenas louca.

Não quero mais me perder

CF
Teu corpo se faz meu quando te amo!


No momento em que deitei em teu leito,

senti que a vida se fazia a cada gesto e

a cada movimento de afeto externado no ato.

Guarda-me contigo meu querido!

Porque é para teu ser que o meu pulsa,

é em teus carinhos que o mundo torna-se

possível para mim.

CF
Correr ao teu encontro...




Beijar-te a face, a boca...



Beijar-te



infinitamente!



Sem pensar no beijo acontecendo...

Não pensar propositadamente.

Excluir de mim as culpas:

tuas, minhas...

Excluir tudo quanto não for amor.



E beijar-te, beijar-te a face,

a boca...



o ser por inteiro.





Porque este beijo é divino!

Cálice sagrado.





Concedeu-nos Deus a

visão do paraíso!

 
CF
As vezes passa.


por onde passa?

Em outras fica encolhida.

Aguarda, aguarda...

Interferências.

Partir. Não, não pensar.

Aguardar... e guardar.

Eternizar a si e orar!

Ah sim, orar.

No altar a mão alcança

em gesto e pensamento:

Tão sacra a emoção de amar!

CF
A vida é o que não sabemos.


Ver é não saber.





Olhar para quem

Nesta insana lida

Nestes tortos caminhos?

Negar a si para poder

respirar.



Morrer em

todas as estações e,

talvez um dia, ressurgir.





Medo e esperança.

Convivem em desacerto

na mente desperta.

A lágrima cai:

prossegue, prossegue...

CF

Segredo

As mãos em suave toque

Alguns olhares e carícias

Ausência de pudor

Da roupa, das mesuras e formalidades

Indecoroso, malicioso

Mas essencial amor!

Quando uma mulher diz:

Toma, sou tua!

Fala da profundeza de

Suas entranhas.

Se entrega e pouco

Importam-lhe as indecências.

Em pureza comete o

Mais vil dos pecados sem ao

Menos uma lágrima de remorso.

Os seios, as pernas, a boca...

Partes impronunciáveis são

Expostas em sussurros

Que desconhecem as

Convenções e na

Volúpia gulosa de crianças

Dois amantes em segredo

Redefinem a estética do amor.

CF

Azul

O azul me envolveu em seu estranho silêncio.
mal sabia ele que não sei calar.
Sou voz, sou fala,
porque o verbo me domina.Meu pensamento não silencia.
Meu sentimento aquietasse, não meu pensamento...
Retirar, subtrair a mim mesma.
Sou azul diante de prantos recolhidos,
sou azul em todos os meus abandonos.
Menos no silêncio. Não sei o que é o silêncio porque sou palavra.
Tudo quero gerar em meio as palavras, o castigo e a glória.
Não sei o que é silêncio, sou fala.
Rio absoluto de palavras que escoam no azul infinito que nunca me cala.